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No dia 15 de julho de 1995, um sábado, eu tive a experiência mais marcante da minha infância. Eu tinha apenas oito anos, mas aquela sensação de desamparo e medo ficou gravada em mim como uma tatuagem invisível que ainda dói quando penso no que aconteceu. Meu nome é Marcelo, e hoje, aos 36 anos, resolvi contar essa história porque acredito que falar sobre as feridas do passado pode ser uma forma de alívio. É quase como acender uma vela naquele quarto escuro.

Naquele dia, tudo começou com uma pequena travessura. Eu tinha derrubado um copo de leite no chão da cozinha enquanto tentava alcançar o pote de biscoitos no alto da prateleira. Meu pai, que era um homem rígido, ouviu o barulho e veio correndo, com passos pesados que ecoavam como trovões no corredor. Ele me encontrou com os olhos arregalados, segurando o copo vazio, e antes que eu pudesse explicar o que tinha acontecido, ele gritou:
“Vai pro quarto, agora!”

Fui correndo, com o coração disparado, sem entender direito o que viria a seguir. Entrei no quarto e me sentei no chão, encostado na cama, esperando ele aparecer para dizer que estava tudo bem. Mas não foi isso que aconteceu. Meu pai entrou, fechou a porta com força e trancou-a por fora. Eu ouvi o barulho da chave girando na fechadura e, em seguida, o som de seus passos se afastando. Fiquei ali, sozinho, na penumbra, sentindo o calor do sol se apagar enquanto o quarto escurecia.

No início, eu só fiquei parado. Olhava para a porta, achando que ele voltaria a qualquer momento para me soltar. Mas os minutos passaram e tudo permaneceu em silêncio. Minha respiração ficou mais rápida, e a sombra das árvores do lado de fora projetava formas assustadoras na parede, alimentando a imaginação de uma criança com medo. Comecei a chorar baixinho, segurando os joelhos contra o peito, como se aquilo pudesse me proteger.

Não sei quanto tempo fiquei ali. Talvez tenha sido uma hora, talvez duas. Para uma criança, parecia uma eternidade. Em algum momento, a fome começou a apertar, e a garganta ficou seca. Eu batia na porta com os punhos fechados e gritava pelo meu pai, pedindo para ele me tirar dali, mas ninguém respondia. Era como se eu não existisse. Naquela solidão, eu sentia que minha única companhia era o medo, um medo que parecia maior do que o próprio quarto.

O mais assustador não era o escuro em si, mas o que ele fazia comigo. Ele amplificava tudo que eu sentia. Cada estalo no telhado parecia um monstro, cada sombra era uma ameaça, e o silêncio era ensurdecedor. Eu sentia um peso no peito, como se o ar tivesse ficado mais grosso e difícil de respirar. Era o medo de não ser ouvido, de ser esquecido.

Depois de muito tempo, finalmente ouvi o som da chave girando novamente. Meu pai abriu a porta, olhou para mim com aquela expressão que misturava raiva e decepção, e disse apenas:
“Agora aprenda a não desobedecer.”

Não teve abraço, não teve conversa, não teve explicação. Ele saiu e me deixou ali, parado no chão, ainda tremendo. Eu não conseguia entender o que tinha feito de tão errado para merecer aquilo. Tudo o que eu queria era pegar um biscoito.

Hoje, eu olho para trás e vejo como aquela experiência me marcou. Ela não foi só sobre ficar preso num quarto escuro; foi sobre sentir que minha voz não importava, que meu medo não tinha valor, e que, de alguma forma, eu era pequeno demais para ser levado a sério. Durante muitos anos, carreguei essa sensação comigo, e ela influenciou minha forma de me relacionar com as pessoas e de lidar com meus próprios erros.

Foi só depois de começar a terapia, já adulto, que comecei a entender o impacto daquela noite. Meu psicólogo me ajudou a enxergar que o escuro não era apenas o quarto, mas também o silêncio dentro de mim, o espaço onde eu guardei todo aquele medo, toda aquela sensação de abandono. Ele me disse que a dor precisa ser ouvida, porque se ela não encontra uma voz, ela se transforma em um eco constante na nossa vida.

E foi isso que eu fiz. Transformei aquele eco em palavras. Hoje, eu sei que aquele menino no quarto escuro precisava de carinho, não de castigo. E ao falar sobre isso, sinto como se, de alguma forma, eu estivesse acendendo a luz naquele quarto pela primeira vez. Porque o escuro só tem poder enquanto o deixamos permanecer lá.

 

Nenhum de meus contos retrata o caso de algum paciente atendido por mim. Trata-se de uma ilustração da vida cotidiana, de histórias que motivam pessoas a buscar terapia/psicoterapia.

Se quiser falar comigo ou se estiver à procura de ajuda para si ou para alguém, entre em contato.

Maicon Moreira
Maicon Moreira
Psicólogo Clínico (CRP 05/54280), Especialista em Psicoterapia Cognitiva e Doutor em Psicologia pela UFRRJ. Atua como Terapeuta Cognitivo comportamental e Junguiano. Tem formação em Terapia Cognitiva, Terapia do Esquema, e Terapia da Aceitação e Compromisso. Tem interesse nos seguintes temas: Psicoterapia Cognitiva, Psicologia Analítica, Violência Psicológica, Saúde Mental e Autoconhecimento, Memória Social, História da psicoterapia e Formação do Masculino.

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