“O Grito da Masculinidade”: uma face apenas do universo masculino.

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“O GRITO DA MASCULINIDADE”

Esta semana rolou um vídeo nas redes sociais, onde um treinador (coach) pede para um participante de seu evento de Coaching colocar sua masculinidade pra fora através do grito, e isso tem sido chamado de “o grito da masculinidade”. Na cena, ele orienta o rapaz a gritar o máximo que pode no microfone e em seguida os demais homens todos de pé o acompanham formando uma espécie de grito de guerra tribal, ou algo assim. Em meio aos gritos, é possível identificar várias mulheres sorrindo e muitas com tom de deboches.

Imagem do vídeo no Facebook

Bem, eu aproveito o ocorrido para trazer uma reflexão sobre a técnica utilizada pelo coach e também sobre “masculinidades“.

Em primeiro lugar, olhando a ação do Coach, me parece que a intervenção se baseia na técnica desenvolvida na década de 1970, por um psicólogo americano chamado Arthur Janove. Segundo este psicólogo, o corpo registra nossas dores emocionais e precisamos nos conectar com elas pra senti-las e assim nos libertarmos, por isso há presença de gritos e choros em suas intervenções (terapias).

A técnica (terapia) de Janove, embora pareça interessante, não foi difundida por falta de comprovação científica. Isso não significa que gritar ou chorar não sirva pra nada, pelo contrário, no vídeo podemos observar que ao gritar o rapaz vivenciou uma cartase, ou seja, ele colocou pra fora algum conteúdo emocional que o incomoda, algo que mexe com seu comportamento e, possivelmente, o acompanha já há algum tempo, e isso traz certo alívio. Mas, apesar de a cartase gerar uma sensação de bem-estar, ela em si pode não resolver uma questão profunda.

A fala do Coach dizendo para o rapaz se lembrar da “essência dele”, se referindo a sensação de força gerada pelo grito, significa muito pouco terapeuticamente. No momento e talvez algum tempo depois dessa experiência ele se sentirá bem, mas com o passar do tempo, quando ele retornar para sua vida, quando voltar a ser exposto a todos os processos ativadores de desconforto emocional, provavelmente, ele não se sentirá tão à vontade e novamente passará a ser incomodado pelo mesmo processo interno.

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Essa orientação soa como se fosse um conselho, algo que de imediato parece eficaz, mas com o tempo a gente perceber suas limitações no âmbito emocional. É como se ele tivesse dito pro rapaz: “sua insegurança existe porque você não coloca sua masculinidade pra fora“. E, pra vivenciar a masculinidade você deve gritar… Pronto, depois disso já está tudo resolvido dentro de você e a partir de então você é aceito como um legítimo macho alfa e toda insegurança desaparece. Putz, sabemos que não é bem assim que funciona…

Além disso, o show organizado pelo coach e a participação desse rapaz, me fez lembrar o quanto o padrão hegemônico de masculinidade ainda é presente na sociedade e tenta, de todas as formas, se impor. Isso acaba sendo também um reflexo do avanço do feminismo, ou seja, muitos homens que vivem confortavelmente esse padrão de masculino acreditam mesmo que o feminismo é uma ameaça e assim reforçam esse estereótipo de masculinidade que é e sempre foi pautado na força.

Quem não se sente confortável com esse modelo e, talvez esse rapaz pode ser um exemplo, é forçado a vida toda a seguir um estereótipo ao qual não faz o menor sentido pra ele. Viver um processo de cartase pautado nesse “grito da masculinidade” pode fazer com que muitos acreditem mesmo que tal atitude o levará a mudanças profundas, mas pode ser mais um processo de frustração porque ele estaria se esforçando pra seguir um comportamento diferente apenas.

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Questionar o padrão normativo de masculinidade não significa feminilizar o homem. Não é isso. Na verdade, quando a gente tem a oportunidade de refletir sobre como as coisas acontecem, como nos tornamos quem somos, como os modelos nos são impostos e precisamos seguir, a gente pode encontrar um caminho em meio a tudo isso e se sentir mais à vontade.

Por que existe só uma forma de ser homem? Por que todos nós precisamos demonstrar nossa virilidade através da força? Por que o único sentimento que podemos expressar é a raiva? Por que homem não pode ser sensível? Por que nós homens não podemos gostar de quietude? Por que????

São muitos questionamentos e paradigmas a serem quebrados nesse mundo ainda.

O fato de só encararmos uma possibilidade de ser homem já exclui todo mundo que não se encaixa 100% nesse modelo. Essa galera certamente vai se sentir insegura, muitas vezes com baixa autoestima, e vai acreditar mesmo que se sente assim por ser diferente já que não segue esse padrão.

Além disso, não podemos deixar de observar que o tal “grito da masculinidade” acaba fazendo alusão à expressão da raiva, única emoção comumente expressada por nós homens. E isso aqui talvez seja um dos aspectos mais complexos de tudo isso, porque enquanto nós homens não aprendermos a vivenciar todas as emoções existentes, acabaremos tendo nosso mundo emocional limitado e nos tornando sempre vítimas da raiva e da força.

A gente percebe no vídeo que, possivelmente, a cartase fez o rapaz se sentir bem e confiante e talvez sua questão de desenvolvimento envolva exatamente a insegurança pessoal, logo, gritar transmite a sensação de poder, controle, força, etc. algo que nós homens experimentamos ao longo da história e nos simboliza normalmente.

O fato de muitos homens terem acompanhado o ato e gritado junto com o rapaz, não significa que todos ali estavam de acordo com o ocorrido, acontece que no meio do evento se portar de forma diferente soaria estranho, já existem estudos na área da psicologia social que explicaria isso por exemplo. Portanto, para que um homem se comporte de forma diferente, ele precisa de referências e suporte social para tal, e isso na ocasião não existia, pelo contrário, o estereótipo proposto era mesmo do homem viril, representado pela força, típico macho alfa.

Por fim, podemos pensar que existe um mundo gigante e incrível pra todos nós que possibilita existir muitas formas de ser e isto nos inclui enquanto homens também. Precisamos pensar na possibilidade de existir “masculinidades” no plural e não uma “masculinidade” no singular, porque não somos todos iguais e temos muitas emoções pra experimentar, pra conhecer, além da raiva.

Maicon Moreira
Maicon Moreira
Psicólogo (CRP 05/54280), Doutorando e Mestre em Psicologia pela UFRRJ e Especialista em Psicoterapia Cognitiva. É leitor autodidata da obra do psiquiatra Carl Gustav Jung. Tem interesse nos seguintes temas: Psicoterapia Cognitiva, Psicologia Analítica, Violência Psicológica, Saúde Mental, Memória Social, e Formação do Masculino. Trabalha como psicoterapeuta utilizando abordagem integrativa em atendimentos Online (videoconferência).

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